Registros Transitórios de Dinghai - Novel - Capítulo 29
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Chen Xing preparou uma tigela concentrada de Decocção Mafei e tentou abrir a boca de Che Luofeng para que ele a tomasse. No entanto, o rosto de Che Luofeng estava pálido como um fantasma. Depois de sofrer ferimentos graves nas montanhas e florestas do norte, ele havia apostado tudo em seu último suspiro para voltar até aqui, e isso já havia esgotado quase todas as suas forças.
Sem dizer uma palavra, Xiang Shu pegou a tigela, ergueu a cabeça, encheu a boca com a decocção e então se inclinou para alimentar Che Luofeng.
Chen Xing segurou uma agulha de costura torta enquanto saía e pediu que Xiang Shu lavasse as mãos com shaojiu¹ para auxiliá-lo. Murmurando, disse: “Ainda bem que seu companheiro cobriu o estômago dele com uma tigela para conter os intestinos expostos. Caso contrário, se tivessem se rompido, nem mesmo um imortal poderia salvá-lo. Traga as luzes e os espelhos para cá.
Seus subordinados já haviam afastado todos os que não estavam envolvidos. Chen Xing primeiro limpou os ferimentos de Che Luofeng, já inconsciente, com shaojiu, removendo o pus, o sangue e a sujeira. Quanto mais ele limpava, mais sangue jorrava, e o corpo de Che Luofeng ficava gelado. Chen Xing ordenou que dois dos jovens guerreiros Rouran pressionassem pontos de acupuntura para estancar o sangramento, então inseriu as agulhas e conseguiu conter o fluxo de sangue.
“Você já salvou pessoas com esse tipo de ferimento antes?” Xiang Shu perguntou, observando como Chen Xing era familiarizado, habilidoso e rápido em seu tratamento.
“Nunca” respondeu Chen Xing. “Só costurei um urso antes.”
Xiang Shu: “…”
Chen Xing disse: “Estou brincando, não precisa ficar tão nervoso.”
As mãos de Chen Xing e Xiang Shu tremiam ligeiramente — o sangramento de Che Luofeng era intenso demais, e o algodão e as gazes logo ficaram encharcados. A voz de Xiang Shu saiu instável: “E aquele remédio que você me deu antes? Onde está?”
“Não há mais”, respondeu Chen Xing, mantendo a calma. “Era o último que restava no Departamento de Exorcismo.”
Xiang Shu inspirou profundamente. Chen Xing então disse: “Não fique nervoso.”
Ele conseguia sentir que aquele jovem chamado Che Luofeng era extremamente importante para Xiang Shu. Chen Xing tinha confiança em tratar os ferimentos, mas o sangramento excessivo o deixava de mãos atadas. O maior temor agora era que Che Luofeng morresse por perda de sangue antes mesmo que o ferimento abdominal pudesse ser suturado.
Mas ele não ousou dizer isso a Xiang Shu. A verdade é que ele não tinha certeza se conseguiria salvar Che Luofeng — só podia afirmar que 70% dependia de suas habilidades médicas, enquanto os outros 30% dependiam da vontade de viver do paciente.
O rosto de Che Luofeng estava pálido, os olhos firmemente fechados, como se estivesse mergulhado em um longo sonho. Aparentava ter idade similar à de Xiang Shu, mas trazia os traços distintos dos Rouran: lábios finos, cílios longos, maçãs do rosto altas e traços faciais bem definidos, que transmitiam uma teimosia característica. Era a mesma expressão obstinada que Chen Xing reconheceu nos retratos de cavaleiros Rouran — aqueles com elmos adornados que já viu em pinturas antigas.
Seus braços, ombros e costas eram poderosos, com pernas longas e cintura forte – características que denotavam um praticante de artes marciais. Tudo agora dependia se sua constituição física seria forte o suficiente para resistir.
Chen Xing completou cerca de metade da sutura abdominal quando, ao se curvar para ouvir o coração de Che Luofeng, percebeu que os batimentos estavam perigosamente muito lentos…
Tomando fôlego, Chen Xing fez brilhar a Lâmpada do Coração em sua mão e a pressionou contra o peito de Che Luofeng. Ele sussurrou: “Che Luofeng, seu Anda te espera. Resista. Não importa o quão difícil seja… você precisa sobreviver.”
Xiang Shu respirava acelerado. Sua voz tremia ao dizer: “Che Luofeng! Sobreviva! Você me prometeu antes… prometeu a Shulü Kong!”
Quando a luz da Lâmpada do Coração de Chen Xing penetrou no meridiano cardíaco de Che Luofeng, seus batimentos cardíacos ficaram um pouco mais estáveis. No entanto, o sangramento piorou, forçando Chen Xing a costurá-lo imediatamente.
“Quanto tempo ainda?” Xiang Shu percebia que Che Luofeng não aguentaria por muito mais tempo. O sangramento aumentava cada vez mais, encharcando suas roupas.
“Quase pronto.” As mãos de Chen Xing tremiam enquanto ele costurava. “Depois de colocar os intestinos de volta – os órgãos internos dele retornarão às suas posições originais e cresceram sozinhos. Cuidado para não formar nós.”
Os dois trabalharam juntos para restaurar o abdômen de Che Luofeng ao seu estado original. Chen Xing inseriu todas as agulhas de prata nos pontos de acupuntura de Che Luofeng e usou técnicas de injeção no braço para estancar o sangramento, o que realmente fez Chen Xing usar tudo o que havia aprendido ao longo da vida. Este momento foi verdadeiramente um ponto alto na carreira médica de Chen Xing desde que ele começou a aprender com seu mestre.
O último ponto foi dado. As bandagens foram enroladas, e o remédio, aplicado. Os corpos e as mãos dos dois já estavam cobertos de sangue.
“Decocção de ginseng, rápido!” Chen Xing ordenou.
Imediatamente, Xiang Shu seguiu suas instruções e derramou a decocção de ginseng — preparado para manter Che Luofeng vivo — em sua boca. Chen Xing aplicou ervas anti-inflamatórias e pomadas para estancar o sangramento e acelerar a regeneração muscular, independentemente da situação atual do ferido.
“Huh——”
Chen Xing estava exausto e disse: “Terminamos.”
Xiang Shu abraçou Che Luofeng, que estava em seus braços. O rosto dele ainda estava horrivelmente pálido, e Xiang Shu soltou um leve suspiro de alívio.
“Com sorte, ele vai conseguir acordar.” Chen Xing ouviu o batimento cardíaco de Che Luofeng e depois verificou a respiração dele — estava fraca, mas extremamente estável. Ele saiu para lavar o sangue que cobria todo o seu corpo. Só então percebeu que as estrelas já haviam tomado conta do céu — já era meia-noite.
Xiang Shu dispensou seus subordinados para que fossem descansar. Todos já haviam trabalhado incessantemente por doze longas horas. Agora, a preocupação de Xiang Shu era se Che Luofeng conseguiria ou não despertar. Naquela noite, Chen Xing comeu algo rápido, lavou o sangue do corpo, vestiu roupas limpas e assumiu o posto de vigília no lugar de Xiang Shu. Logo depois, o próprio Xiang Shu, após se recompor, juntou-se a ele para manter a vigília ao lado do ferido.
“Vá descansar um pouco”, disse Xiang Shu, sustentando o corpo de Che Luofeng com um braço.
Chen Xing disse: “Apenas levante um pouco mais a parte superior do corpo dele.”
Xiang Shu, porém, insistiu em sentar-se diretamente no tapete, mantendo a parte superior de Che Luofeng apoiado em seus braços enquanto o cobria com outro cobertor. Chen Xing, demasiado exausto para discutir, adormeceu profundamente. Ao despertar, encontrou Che Luofeng ainda inconsciente — e Xiang Shu na mesma posição, tendo passado a noite inteira sustentando-o assim.
No dia seguinte, o Grande Chanyu manteve suas portas fechadas, recusando todos os visitantes. O sol nasceu e se pôs, mas Che Luofeng ainda não despertava. Assim passou um dia e uma noite inteiros.
À meia-noite do dia seguinte, Chen Xing percebeu que algo estava um pouco estranho com Xiang Shu. Ele se aproximou, ajoelhou-se ao lado e ouviu os batimentos cardíacos de Che Luofeng, depois verificou sua respiração.
O olhar de Xiang Shu parecia um pouco atordoado. Ele olhou para Chen Xing. Pelo visto, Chen Xing temia que, se o pior acontecesse, Che Luofeng não acordaria tão cedo.
“Está tudo bem”, Xiang Shu sussurrou, “Não precisa me confortar.”
Chen Xing disse: “Quando eu era criança, meu pai me disse que cada momento da vida de uma pessoa — quando nascem, quando começam a falar, o primeiro amor, o dia em que constroem um lar, se casam, têm filhos, se despedem dos pais… até o momento de deixar este mundo — tudo já está predestinado. Só que não enxergamos esse fio do destino, por isso duvidamos de quem fala sobre ele.”
“Você acredita nisso?” A voz de Xiang Shu naquele momento parecia muito mais terna. Ele estendeu a mão e a colocou delicadamente na testa de Che Luofeng.
Chen Xing ficou em silêncio por um longo momento antes de finalmente soltar um suspiro.
Embora nunca tivesse conhecido Che Luofeng antes, não conseguia evitar um certo sentimento de inveja. Se este fosse realmente seu momento final, ao menos ele teria seu irmão mais leal, Xiang Shu, ao seu lado. Já Chen Xing… nem sequer sabia quem estaria com ele quando sua própria hora chegasse, daqui a três anos.
Falando sério, Chen Xing não sabia dizer se acreditava ou não naquilo. Desde que seu Shifu lhe dissera que não viveria além dos vinte anos, ele sempre se agarrava a ‘e se’ – e se estivessem errados?
Embora seu mestre nunca o tivesse enganado e raramente falhasse em suas previsões, Chen Xing insistia naquele pensamento: Estou vivendo tão bem agora… não é possível que, ao completar vinte anos, eu simplesmente morra, né? Será que uma pedra vai cair do céu e me esmagar no meio da rua?
Assim, Chen Xing vivia num vai-e-vem eterno entre acreditar e não acreditar. Por um lado, sentia que tinha pouco tempo restante, enquanto por outro, secretamente tinha a intenção de desafiar os Céus. No pior dos casos, pensava ele, no dia do meu vigésimo aniversário, vou me esconder num lugar deserto. Numa planicie tão vasta que se estenda por milhares de li, colocarei uma panela na cabeça, tomarei todas as precauções e ficarei ali, imóvel, do nascer ao pôr do sol. Quando eu conseguir sobreviver, não estarei livre?
Enquanto Chen Xing se perdia nesses pensamentos e se preparava para levantar, a voz de Xiang Shu quebrou o silêncio:
“Não vá. Fique aqui comigo, só mais um pouco.”
O coração de Chen Xing pesou, mas ele se sentou novamente. Compreendia que, naquele momento, Xiang Shu precisava desesperadamente de companhia.
“Obrigado”, murmurou Xiang Shu.
Chen Xing descartou a ideia com uma risada. Ele pensou: Eu te salvei do corredor da morte na cidade de Xiangyang, mas você não me agradeceu; mas está me agradecendo pela vida de Che Luofeng. Isso é realmente raro.
“Médicos devem ter um coração benevolente”, Chen Xing respondeu, “É meu dever.”
“Che Luofeng cresceu comigo”, disse Xiang Shu. “Sou filho único. Minha mãe só me teve e depois morreu de doença. Meu pai nunca teve outros herdeiros por muitos anos. Quando eu era criança, sempre invejei os irmãos de outras famílias Tiele. Quando Che Luofeng tinha quatro anos, foi enviado para Chi Le Chuan para servir como refém² do povo Rouran, a fim de emprestar tropas aos Rouran e resgatar seu povo após a destruição do Reino Dai.”
“Che Luofeng disse: ‘Não tenho irmãos, então ele será meu irmão.’ Quando eu tinha sete anos, deixei Chi Le Chuan e rumei para o norte para perseguir um veado ferido, onde fui cercado por uma matilha de lobos. Fiquei preso na mata por três dias e três noites, e os membros da minha tribo pensaram que eu estava morto. Somente Che Luofeng e seus guardas vasculharam toda a região selvagem só para encontrar meu paradeiro.”
“Se estiver vivo, quero vê-lo. Se estiver morto, quero ver seu corpo.” Xiang Shu murmurou, imerso em memórias. “Fizemos esse pacto desde pequenos. Como andas, se um morrer, o outro certamente vingará sua morte. Vocês, Han, têm algo chamado ‘irmãos de juramento’, então acho que é a mesma coisa.”
Xiang Shu olhou para Chen Xing, que estava um pouco triste. Tentou sorrir e disse: “Na verdade, eu te invejo muito por isso.”
Xiang Shu não sabia que Yuwen Xin havia enforcado pessoalmente o pai de Chen Xing. Ele assentiu e disse: “Quando eu tinha dez anos, o povo Rouran finalmente retornou para além da Grande Muralha, mas Che Luofeng voltava todos os anos para me ver. Foi assim anualmente, até o período em que meu pai adoeceu gravemente. Depois que assumi como Grande Chanyu, todas as tribos estavam em desacordo umas com as outras. Foi Che Luofeng quem liderou o povo Rouran para ficar do meu lado e me ajudar.”
“Quando assumi o cargo de Grande Chanyu, eu realmente não tinha energia para continuar cuidando do meu pai. Foi Che Luofeng que tratou meu pai como se fosse seu próprio pai e permaneceu ao lado dele para servi-lo, então tive tempo livre e energia para cuidar dos Hus desgarrados”, disse Xiang Shu. “Esse moleque costumava me importunar para levá-lo ao sul para brincar no lugar onde os Hans vivem. Ele ouviu dizer que as Planícies Centrais eram um lugar muito próspero. Eu realmente não tinha tempo de sobra, então fui adiando e adiando. Se eu soubesse que isso aconteceria…”
“Ele vai melhorar”, Chen Xing o confortou.
Xiang Shu assentiu.
“Você é muito melhor do que eu”, Chen Xing continuou, “Meu irmão de juramento… ah, esquece, nem vale a pena mencionar.”
Xiang Shu: “…”
Chen Xing realmente não sabia como consolar os outros e só sabia usar a maneira simples e direta de dizer: “Estou em pior situação que você, viu? Então você não está numa situação tão ruim em comparação.”
“Você é um Han muito bom”, disse Xiang Shu seriamente. “Você tem um bom temperamento e um bom coração. No começo, eu sempre considerei sua tolerância como covardia, mas olhando para você agora, você realmente não é assim.”
Chen Xing disse um tanto cansado: “É só porque há muitas coisas diante de mim agora que tenho que deixar de lado as queixas por enquanto. Tenho coisas mais importantes a fazer.”
Xiang Shu suspirou novamente e disse: “Mas eu ainda não entendo por que você estaria disposto a ser um exorcista.”
“A Lâmpada do Coração está em mim, eu tenho outra escolha?” Chen Xing riu amargamente e sem esperança.
Xiang Shu: “E se você tivesse uma escolha?”
Chen Xing ficou em silêncio por um longo momento antes de responder: “Ainda assim, eu escolheria ser um. Talvez… essa seja exatamente a razão pela qual o Céu me escolheu, em vez de outra pessoa. Durma um pouco, Xiang Shu. Você já está há dois dias e duas noites sem descansar.”
Chen Xing soltou um longo suspiro, depois se levantou e saiu da tenda. Xiang Shu assentiu, mas não se moveu. Ele ainda segurava seu Anda e nunca o soltou.
A cor branca-mármore do céu do amanhecer podia ser vista no horizonte. Chen Xing inspirou o ar frio de Saibei e parou de andar.
Xiang Shu havia falado muito hoje, o que fez Chen Xing sentir que tinha visto um lado diferente dele. Em seu coração, ele também tinha pessoas de quem se importava e nutria afeto pela família. Assim como Xiang Shu havia dito, “olhando para você agora, você realmente não é assim”, as impressões que tinham um do outro também haviam mudado.
Deveríamos ter conversado assim há muito tempo, pensou Chen Xing.
A princípio, ele ingenuamente pensou que, depois de encontrar esse Protetor destinado, eles se entregariam completamente um ao outro, compartilhando vida e morte em confiança mútua. No entanto, ao longo da jornada, o que mais o desapontou foi perceber que confiar em alguém está longe de ser tão fácil quanto imaginava. Além disso, Xiang Shu é um Hu, enquanto ele é um Han. Seria ainda mais difícil para ambos se identificarem mutuamente.
Mas, de qualquer forma, foi um bom começo. Chen Xing agachou-se perto do riacho e lavou o rosto com água fria. Agora, ele só esperava que Che Luofeng acordasse o mais rápido possível, ou pelo menos que seu estado não piorasse — caso contrário…
Foi nesse momento que ele ouviu Xiang Shu gritar como um louco dentro da tenda!
Chen Xing quase caiu no riacho. Imediatamente, virou-se e correu de volta para a tenda real, gritando: “O que houve?!”
Xiang Shu abraçou Che Luofeng e não conseguia parar de tremer. Ele enterrou a cabeça no corpo dele, levantou a cabeça e olhou para Chen Xing com lágrimas nos olhos.
Che Luofeng abriu os olhos e seus lábios se moveram levemente. Ele sussurrou algo, enquanto seu olhar estava cheio de confusão.
“Ótimo!” Chen Xing sentiu o nariz arder ao ver aquilo também. “Isso é maravilhoso! Você finalmente acordou!”
Xiang Shu queria chorar, mas acabou rindo. Esta foi a primeira vez que Chen Xing o viu perder a compostura daquele jeito. Os três riram juntos, como uns bobos.
A notícia de que Che Luofeng acordou se espalhou como um incêndio no mesmo dia. O povo Rouran se reuniu para agradecer a Xiang Shu e Chen Xing pela recuperação de Che Luofeng. Presentearam-nos com tantas oferendas que encheram a tenda inteira. Chen Xing devorou os sazi fritos* e a carne seca que lhe trouxeram, adornado com jóias de ouro e prata por todo o corpo. Ele bebeu uma xícara de chá com leite e parecia um rico senhor local enquanto continuava a atender os doentes.
(n/t: 炸撒子 (zhá sǎnzi) → sanzá um doce frito típico da Ásia Central.)
Enquanto isso, Xiang Shu, exausto, desabou dentro da tenda e dormiu um dia e uma noite inteiros.
Che Luofeng ficou hospedado temporariamente na tenda de Xiang Shu, para que Chen Xing pudesse cuidar dele a qualquer momento. O herdeiro Rouran mal conseguia falar a língua han de forma estranhamente engraçada, e era um homem extremamente alegre e agitado. De vez em quando, depois de dizer algumas palavras, começava a rir sozinho com altos “hahaha”. Após recuperar a consciência, porém, Xiang Shu retomou sua expressão reservada. Mesmo diante de seu irmão de juramento, permaneceu tão contido como sempre, parecendo que mal o tolerava.
Pelo visto, esse cara é assim com todo mundo, pensou Chen Xing, animado. Não é só comigo que ele age desse jeito.
“Aquele lobo veio pra cima de mim”, Che Luofeng começou a descrever o dia em que esteve em perigo para Chen Xing, “e me amassou como se fosse massa de pão, me virando pra lá e pra cá… depois me enrolou como um bolinho!”
“HaHaHa!” Chen Xing quase engasgou com o chá com leite. Achando a analogia de Che Luofeng um tanto estranha, ele logo o corrigiu: “Não é assim que se fala!”
Che Luofeng disse: “Se não fosse por ter sido arranhado pelo lobo primeiro, e depois cair na emboscada dos Akeles, esse ferimento não seria nada demais.”
Chen Xing perguntou: “Por que os Akeles te emboscaram?”
Che Luofeng explicou com indiferença: “Os Rouran lutaram com eles pela água do rio. Eles mataram o guerreiro mais forte sob meu comando, então nós matamos o filho do líder da tribo deles, aquele bastardo…”
“Tem certeza que foram eles?” Xiang Shu perguntou, com frieza.
“Quem mais poderia ser além deles?” Che Luofeng perguntou em resposta.
Xiang Shu o repreendeu na língua Rouran, então Che Luofeng não falou mais. Chen Xing não entendeu, mas percebeu que era algo como: “não tire conclusões precipitadas sem ter visto com os próprios olhos”. Na pradaria, era comum ver assassinatos, roubos e até brigas acontecerem por um mero desentendimento ou porque uma das partes não suportava a visão da outra. Ao norte das Montanhas Yin, a matança era ainda mais indiscriminada; havia muitos caçadores que, assim que sentiam que algo estava errado, preferiam dar o primeiro golpe fatal para evitar que a negligência os colocasse em apuros.
Che Luofeng não conseguia dizer quem era a pessoa que o emboscou. Afinal, ele foi arranhado por um lobo naquele momento e cambaleou para os arbustos, quase inconsciente. Logo após o ataque, seus subordinados Rouran correram para resgatá-lo, então seus inimigos só puderam recuar. Eles não viram quem eram os agressores nem conseguiram distinguir suas armas.
Depois de muita especulação, nem mesmo Xiang Shu conseguiu descobrir quem havia ferido Che Luofeng. Ele só pôde guardar isso em mente por enquanto e investigar lentamente mais tarde. Ele repreendeu mais uma vez seu destemido Anda, pedindo-lhe para não fazer coisas tão perigosas de forma tão imprudente.
Nos dias seguintes, Che Luofeng vinha antes do amanhecer para acordar Xiang Shu e exigindo que Chen Xing trocasse seus curativos. Depois disso, ele ficava na tenda sem se importar com formalidades e, ocasionalmente, quando encontrava Xiang Shu ainda dormindo, ele até se enfiava sob as colchas e dormia com ele. Mas Xiang Shu apenas parecia irritado ao empurrá-lo para fora e chutá-lo para o lado.
De dia, Che Luofeng não perdia a energia. A cada minuto, ele tinha que incomodar Xiang Shu — se não estava pregando peças nele, estava importunando-o para conversar. Chen Xing pensou: Você é muito mais atrevido que eu. Sorte sua que é o Anda dele, então não precisa ter medo de morrer. Se fosse eu fazendo tudo isso, Xiang Shu me estrangularia em um instante.
“Olhe para Shulü Kong, ele não é bonito?” Che Luofeng cochichou observando Xiang Shu durante seu cochilo da tarde como quem exibe uma posse sua. Ele disse a Chen Xing: “Para mim, ele é como Wang Zhaojun³.”
“Ele é realmente lindo…” Chen Xing concordou, com um ligeiro tremor nos lábios, com o elogio de Che Luofeng à beleza de Xiang Shu. “Mas o que Wang Zhaojun tem a ver com isso? Você já viu Wang Zhaojun pessoalmente?”
Che Luofeng respondeu: “Diz a lenda que Wang Zhaojun é a mulher mais bela do mundo, não é mesmo?”
Os povos hu, além da Grande Muralha nunca tiveram uma noção clara da aparência dos habitantes das Planícies Centrais, conhecendo apenas a lenda do “Cortejo de Zhaojun”. Também corria o boato de que Zhaojun, que certa vez se casou com o Grande Chanyu Huhanye, era a mulher mais bonita do mundo. Até mesmo os gansos selvagens que passavam pousavam na pradaria para contemplar sua bela face.
Che Luofeng disse: “O Grande Chanyu Huhanye se casou com a mulher mais bonita do mundo, enquanto o Grande Chanyu Shulü Kong, o que ele deve fazer sobre o seu casamento? Você não acha que ele só pode ser dado em casamento4?”
Chen Xing sussurrou: “Ele não está dormindo… ele te ouviu.”
Xiang Shu: “…”
Chen Xing observou Xiang Shu por um instante e pensou: De acordo com o decreto de casamento entre homens de Fu Jian, se não fosse por esse cara ser um cachorro louco (ainda que bonito), até que eu topava casar com ele. Só que, levando ele pra casa, provavelmente acabaria apanhando todo dia — e minha vida ficaria em risco. No entanto, por algum motivo, Chen Xing também sentiu vagamente que os sentimentos de Che Luofeng por Xiang Shu eram, às vezes, um tanto estranhos.
Xiang Shu já estava acordado quando Chen Xing perguntou a Che Luofeng: “Depois da sua briga com os Akeles, eles ainda viriam a Chi Le Chuan?”
A pergunta fez Che Luofeng ficar imediatamente em alerta. “Por que você está procurando por eles?”
Chen Xing sentiu um frio na espinha. Seus olhos pousaram em Xiang Shu enquanto lembrava que os Akeles eram uma das tribos nômades do norte mencionadas na Antiga Aliança. Em poucos dias, eles retornariam do norte para passar o inverno sob os céus de Chi Le Chuan. O que ele não sabia era se a atual rixa com os Rouran reacenderia o antigo descontentamento que os Akeles nutriam por Xiang Shu.
Xiang Shu pareceu ler os pensamentos de Chen Xing e afirmou: “Não se preocupe. Se ousarem se opor ao Grande Chanyu, estarão rompendo o Antigo Pacto de Chi Le.”
Chen Xing sentiu um alívio gradual. O clima se tornava mais frio a cada dia, mas a primeira neve depois da chegada do outono teimava em não chegar. Todas as manhãs, a pradaria estava coberta de geada, até o tão esperado terceiro dia do décimo mês – ainda não havia qualquer sinal da lendária Tribo Akele.
O Festival do Final do Outono das pradarias seria no décimo-quinto dia do décimo mês. Enquanto procurava informações sobre a tribo do norte, Chen Xing descobriu que os Akele eram um ramo dos Shiwei — quase três mil pessoas, que viviam ainda mais ao norte, próximas à região do Lago Norte*.
(n/t: *para nós é como o Mar do Norte, mas fica no Lago Baikal)
“Eles virão”, disse Xiang Shu, com indiferença. “Se não vierem, quando a nevasca chegar, vão congelar até a morte no norte.”
“Shulü Kong”, Che Luofeng sorriu, “Quando você vai me levar para o lugar onde os Hans vivem?”
Enquanto Chen Xing trocava os curativos de Che Luofeng, este se ocupava em montar uma coroa de penas para o Grande Chanyu, Xiang Shu. Xiang Shu não respondeu.
Che Luofeng enganchou o queixo de Chen Xing com o dedo e disse: “Ouvi dizer que há muitos lugares para se divertir nas suas Planícies Centrais.”
Chen Xing afastou a mão de Che Luofeng com um tapa e retrucou: “Mais um querendo invadir e dominar as Planícies Centrais? Infelizmente, o Norte já não nos pertence – fiquem à vontade para brigar com Fu Jian por ele.”
Che Luofeng riu de novo: “Se eu liderar meu exército para dentro da passagem, lutar contra Fu Jian e me tornar imperador Rouran… Chen Xing, você me ajudaria?”
Xiang Shu repreendeu Che Luofeng asperamente na língua Rouran, mas Chen Xing falou com seriedade: “Todos pensam que as Planícies Centrais são terras sem dono, que pertencerão a quem for mais forte na guerra. Mas já consideraram como se sentiriam se os Han invadissem sua terra natal, pisoteando tudo e saqueando suas propriedades?”
Che Luofeng disse com um sorriso: “Foi só uma brincadeira. Se o Grande Chanyu não concordar, a Aliança Chi Le não irá para o sul.”
Em pouco tempo, Chen Xing já havia atendido praticamente todos os pacientes da região – um fluxo interminável que não dava trégua. Em apenas um mês, ele tratou milhares de pessoas, chegando a atender cerca de duzentos pacientes por dia. Sua fama de “Médico Divino” já se espalhou por toda Chi Le Chuan, e ninguém mais ousava tratá-lo como servo. Por onde passava, agora recebia o respeito solene dos povos hu. E desde aquela noite, a atitude de Xiang Shu em relação a ele também melhorou.
Che Luofeng já se recuperou quase completamente, podendo até mesmo cavalgar novamente. Em dias comuns, Xiang Shu ocasionalmente o levava para passeios pela pradaria. Chen Xing os acompanhou em algumas ocasiões, mas ele não gostava de se movimentar no frio e, como os pacientes o procuravam de vez em quando, ele não os acompanhou mais.
Apesar de tudo, Che Luofeng demonstrava um interesse peculiar pelo mundo dos Han. Não apenas aprendeu um pouco do idioma han, como também importunava Chen Xing com perguntas incessantes – e em seu tom havia uma certa cobiça que deixava Chen Xing visivelmente desconfortável.
“Me ensine a escrever o nome de Shulü Kong em han”, pedia Che Luofeng.
Chen Xing pensou: Por que não aprende primeiro a escrever seu próprio nome?
◈ ◈ ◈
O Festival do Final do Outono chegou – a maior celebração anual dos povos hu além da Grande Muralha. Após o décimo quinto dia do décimo mês, a pradaria mergulharia no inverno. Nesse dia, todos os hu celebravam com cantos e danças, abatiam cordeiros e bebiam vinho, enquanto se preparavam para os longos meses de inverno. Chen Xing aprendeu um pouco das línguas Rouran, Xiongnu e Tiele, sabia que a primeira neve normalmente chegava no fim do nono mês ou início do décimo mês. Mas este ano, os flocos brancos teimavam em não aparecer – e a Tribo Akele, da mesma forma, nunca surgiu no horizonte.
Se a Tribo Akele não aparecesse, Chen Xing não teria como confirmar a localização no mapa. Assim que a primeira nevasca caísse, as rotas para o extremo norte se tornariam intransitáveis — e eles teriam que esperar até a primavera. Com o tempo passando a cada dia, a ansiedade de Chen Xing só aumentava.
“Depois de hoje”, Xiang Shu ainda estava tomando chá em sua tenda, “Se ainda não tiverem chegado, enviarei homens para buscá-los no Norte.”
Depois de retornar, Xiang Shu vestiu o manto real usado pelo Grande Chanyu. Sua vestimenta era extremamente deslumbrante, e ele usava uma coroa de penas na cabeça com três penas inseridas. Sua túnica marcial era bordada com a insígnia da divindade dos Dezesseis Hus, e parecia bastante grandiosa. Após observá-lo por um longo tempo, Chen Xing descobriu que Xiang Shu também tinha trabalho a fazer. A posição de “Grande Chanyu” era diferente da de um imperador; ele raramente se envolvia com os assuntos internos das tribos Hu. Em vez disso, ele estava mais envolvido em mediar disputas, dividir responsabilidades e atuar como um símbolo da antiga aliança. Quando estava ocupado, ficava extremamente atarefado, frequentemente ouvindo os anciãos de cada tribo lamentarem suas queixas enquanto se acusavam mutuamente. Depois de lidar com esses assuntos, ele ficava muito ocioso nos momentos livres (muitas vezes sem nada para fazer o dia inteiro) — tanto que passava tardes inteiras trocando olhares entediados com Chen Xing dentro da tenda.
“Sem neve”, disse Xiang Shu, “não teremos corridas de esqui no Festival este ano. Pare de franzir a testa o tempo todo.”
Depois que passar o Ano-Novo, só me restarão três anos de vida! Chen Xing pensou. E você ainda pergunta se eu devo franzir a testa ou não?!
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Notas:
1 烧酒 (shāojiǔ) – Traduzido como “álcool puro” (ou “aguardente”), já que se refere a um líquido destilado usado para desinfecção.
2 Especificamente, um príncipe enviado para ser mantido refém em um reino vizinho ou, neste caso, uma tribo.
3 王昭君, Wang Zhaojun – Wang Qiang, comumente conhecida por seu nome de cortesia Wang Zhaojun, era conhecida como uma das Quatro Beldades da China Antiga. Nascida na vila de Baoping, no condado de Zigui (na atual província de Hubei), na dinastia Han Ocidental (206 a.C.-8 d.C.), foi enviada pelo Imperador Yuan para se casar com Chanyu Huhanye, do Império Xiongnu, a fim de estabelecer relações amistosas com a dinastia Han por meio do casamento.
4 自己嫁人去了, Kkkk como se ele fosse a esposa que vai se casar, e não alguém que vai ter uma esposa.
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Flor: Che Luofeng tira o zóio que ele já tem dono!!!