Registros Transitórios de Dinghai - Novel - Capítulo 28
Na região de Chi Le Chuan, as áreas residenciais nômades fora da Grande Muralha ocupavam vastos territórios comparáveis a grandes cidades dentro da passagem, como a cidade de Ye e Xiangyang. As áreas eram divididas de acordo com as tribos: a Tribo Tiele vivia no lado leste. O local onde residia o Grande Chanyu ficava entre montanhas de ambos os lados e enfrentavam esse assentamento além da Grande Muralha, sem qualquer muralha protetora. Além do assentamento, muitos nômades viajavam até lá com suas famílias e, após passarem um breve verão no local, juntavam-se à Antiga Aliança e preparavam-se para enfrentar o longo inverno que logo chegaria.
Chen Xing pensou que aquele lugar era realmente lindo. Havia paz no meio do burburinho, e a paisagem também era deslumbrante. Depois de subir até a metade da montanha atrás deles, era possível ter uma vista panorâmica da planície. Os clãs de Xiang Shu também eram muito livres e animados; cavalgavam, jogavam bola à vontade e passavam o dia sem fazer nada de produtivo. Gritavam de alegria, riam o tempo todo, vivendo sem pressa, apenas esperando o inverno chegar.
Mas por que diabos eu, Laozi, um convidado que veio de longe, tenho que limpar o seu quarto?! Não sou seu servo! Chen Xing teve vontade de atirar o pano no chão, mas não resistiu à curiosidade e acabou espiando o lugar onde Xiang Shu morava.
O ambiente não parecia pertencer a um homem com esposa e filhos, mas dava para ver que, em algum momento, outras pessoas haviam morado ali antes.
Chen Xing cresceu ao lado de seu mestre, e aquela atmosfera lhe era muito familiar. Talvez Xiang Shu tivesse vivido ali com o pai antes de crescer. E, antes disso, sua mãe também devia ter estado presente.
Ele limpou casualmente a estante e folheou os livros que estavam nela. Mal reconhecia as palavras escritas ali, mas conseguiu identificar várias ilustrações. A maioria eram imagens de artes marciais, manuais de equitação e arco e flecha, registros de armamentos, explicações sobre meridianos e pontos de acupuntura escritos por estrangeiros, além de um mapa da região além da Grande Muralha. Havia também inúmeros registros de nomes.
Ao pôr do sol, os sons de música e dança ecoaram lá fora — Xiang Shu havia voltado.
Xiang Shu: “O que você está fazendo? Não mexa nas minhas coisas!”
Chen Xing quase esfregou o pano de limpeza no rosto dele, irritado: “O que você acha? Os costumes daqui obrigam os convidados a limparem a casa?!”
Xiang Shu ficou surpreso, mas depois sorriu.
Desde que voltou à Aliança Chi Le, o humor de Xiang Shu tinha melhorado bastante. Era a primeira vez que Chen Xing via Xiang Shu sorrir, e assim que ele sorriu, o rapaz instantaneamente pareceu mais bonito. Aquela aura intransponível de “não chegue perto” desapareceu imediatamente, e o que a substituiu foi uma gentileza ainda mais afetuosa e amigável do que a de Tuoba Yan.
Mas Xiang Shu imediatamente desfez o sorriso e disse: “Vamos jantar. Me acompanhe.”
Naquela noite, os Tiele realizaram uma grande celebração. Fogueiras foram acesas por toda a Chi Le Chuan para comemorar o retorno do Grande Chanyu. Bebiam vinho, assavam peixes e carne ao pé das montanhas, suas vozes cantantes ecoando pelo céu. Chen Xing sentou-se ao lado de Xiang Shu. Um subordinado ofereceu-lhe uma perna de cordeiro assada e entregou-lhe uma faca de prata. O apetite de Chen Xing foi despertado; ele cortou uma fatia da carne e estava prestes a levá-lo à boca quando, de repente, as pessoas ao seu redor o repreenderam com irritação.
Chen Xing: “?”
Todos começaram a repreender Chen Xing, fazendo gestos para que ele servisse o Grande Chanyu primeiro. Segurando a faca, Chen Xing teve vontade de esfaquear Xiang Shu ali mesmo.
“Eles disseram que você não está sendo sensato”, disse Xiang Shu casualmente, explicando então aos presentes antes que todos se sentassem lentamente de novo.
Chen Xing, sem alternativa, cortou um pedaço de carne e o ofereceu a Xiang Shu. O Grande Chanyu comeu apenas um pouco, ergueu a mão em um gesto despretensioso e disse: “Fica com o resto.”
Só então todos começaram a jantar. Pouco depois, uma mulher trouxe um idoso apoiado em seu braço – provavelmente um ancião de uma das tribos. Ele se sentou e cumprimentou alguns dos velhos que Xiang Shu trouxe de Chang’an. Conversas triviais se seguiram, enquanto Xiang Shu permanecia em silêncio, bebendo seu vinho e apenas lançando olhares ocasionais a Chen Xing. Chen Xing comia seu cordeiro assado e continuava a especular pelas expressões das pessoas ao redor. Ele ouviu o nome de Fu Jian ser mencionado muitas vezes e adivinhou que eles deviam estar falando mal dele.
Xiang Shu colocou um copo vazio ao lado de sua mão, sinalizando para Chen Xing servir-lhe vinho.
Chen Xing disse: “Você planeja invadir a passagem, derrubar Fu Jian e tomar o lugar dele como imperador?”
Xiang Shu disse casualmente: “Depende do meu humor.”
Chen Xing: “……”
Chen Xing encheu a taça de vinho até a borda para Xiang Shu e insistiu: “E a sua promessa de me levar à tal montanha para procurar a Pérola Dinghai? Você disse que me levaria.”
Xiang Shu: “Espere.”
Embora Chen Xing soubesse que era um tanto impertinente cobrar Xiang Shu logo no primeiro dia de seu retorno, a inquietação em seu peito falou mais alto: “Você não está me enganando, está?”
Xiang Shu olhou para Chen Xing com descrença, como quem diz: “Eu pareço o tipo de pessoa que faria isso?”
“Se não acredita, pode cair fora agora mesmo!” Xiang Shu disse com raiva.
Assim que Xiang Shu elevou a voz, todas as conversas cessaram e os olhares se voltaram para eles. Chen Xing, percebendo o perigo, rapidamente disse: “Calma, calma! Foi um mal-entendido! Grande Chanyu, permita-me fazer um brinde a você!!
Temendo que aquele bando de bárbaros arranjasse problemas para ele, Chen Xing encheu sua tigela de vinho num piscar de olhos e sorriu, pronto para brindar com todos. Fez um gesto para os outros, como quem diz: “Vejam, não estamos brigando!” Mas Xiang Shu segurou a cabeça de Chen Xing com uma mão, pegou a tigela de vinho com a outra e despejou o líquido goela abaixo dele à força.
Chen Xing: “!!!”
Os outros presentes só conseguiam ouvi-los falando na língua dos Han e não entendiam o que havia acontecido, logo retomando suas conversas.
Chen Xing, ensopado e engasgado, bufou de raiva: “Você…”
Mas Xiang Shu simplesmente o ignorou. Voltando-se para as pessoas do outro lado, perguntou em língua Xianbei: “Quando a Tribo Akele chegará?”
A pessoa respondeu respeitosamente também em língua xianbei: “Grande Chanyu, segundo o costume dos anos anteriores, eles chegarão a Chi Le Chuan antes do terceiro dia do décimo mês.”
Chen Xing de repente pensou que o vinho parecia bastante saboroso? Era doce e não queimava sua garganta, Sem cerimônia, serviu-se novamente e começou a beber sozinho.
Xiang Shu comentou casualmente: “A Tribo Akele é um ramo dos xiongnus. Eles vivem nas terras distantes do norte, e conhecem a localização exata do Monte Erqilun melhor que eu.”
Hoje é o décimo quinto dia do nono mês… ainda dava para esperar até o terceiro dia do décimo mês, pensou Chen Xing, enquanto bebia seu vinho e disse: “Se você está ocupado, pode só me desenhar um mapa. Eu vou sozinho.”
Xiang Shu fez uma expressão de escárnio: “Você tem ideia de como é o inverno se continuar indo para o norte?”
Chen Xing: “No máximo é só vestir mais algumas camadas…”
O guarda ao lado interveio em Xianbei: “Espere Che Luofeng voltar, talvez ele traga notícias dos Akele.”
“Che Luofeng é meu Anda¹”, Xiang Shu não olhou para Chen Xing, ficando absorto na fogueira, “Ele cresceu comigo. Ele partiu de Chi Le Chuan para caçar no Norte. Desta vez foi muito longe; posso perguntar a ele quando voltar.”
Chen Xing comeu bastante cordeiro assado – um tanto salgado – e ficou com muita sede, perdendo a conta de quantas tigelas de vinho bebeu. Sua cabeça girava; a bebida, doce como mel e leite de cabra, levou-o a beber cada vez mais… até que sua testa bateu na mesa. Não ouviu as últimas palavras de Xiang Shu antes de desmaiar, completamente embriagado.
Xiang Shu: “……”
“Ele bebeu um jarro inteiro!” O guarda sentado do outro lado ficou surpreso. “Incrível!”
◈ ◈ ◈
Bêbado, Chen Xing sentiu como se tivesse sido carregado de volta à tenda por Xiang Shu. Um cobertor o cobriu, no meio da noite, acordou com sede, enquanto cantorias e risadas de bêbados ainda ecoavam do lado de fora. Ele disse: “Quero água.”
Xiang Shu, sem alternativa, pegou um cantil e inclinou-o gentilmente para que bebesse. Mas após alguns goles, Chen Xing virou de lado e adormeceu instantaneamente.
De madrugada, Chen Xing acordou. O branco mármore do amanhecer surgia no horizonte; a animação em Chi Le Chuan havia cessado, e todos ainda dormiam profundamente.
“Xiang Shu, quero tomar banho…” Chen Xing coçou o corpo, sentou-se e disse.
“O quê?” Xiang Shu, que fora perturbado por Chen Xing a noite toda, vestindo apenas um manto simples, levantou-se e olhou para ele com irritação.
“Quero tomar banho”, Chen Xing repetiu. “Onde posso conseguir água quente?”
“Lave-se no rio”, respondeu Xiang Shu, impaciente.
Chen Xing: “Vou pegar um resfriado. Quero um banho quente.”
“Você não quer banho quente”, rebateu Xiang Shu. “Mais uma palavra e te jogo no rio.”
Chen Xing: “……”
Só quando o sol já estava alto no céu é que Xiang Shu despertou completamente. Então levou Chen Xing a um riacho para se lavar.
“Está tão frio”, lamentou Chen Xing assim que entrou na água, Xiang Shu, franzindo o cenho, não perdeu tempo e se despiu por completo, entrando na água sem cerimônia. Chen Xing já o vira várias vezes, e eles já haviam se banhado juntos quando entraram em Chang’an. Mas por algum motivo, seu rosto ficou subitamente quente e ele se sentiu um pouco envergonhado.
O corpo de Xiang Shu tinha a elegância selvagem de um cavalo indomável – esbelto, mas marcado por uma masculinidade vigorosa. Sua pele era clara e lisa, e não parecia conter o menor indício da rusticidade do povo Tiele. Especialmente os contornos de suas costas e pernas longas — eram absolutamente atraentes.
“Esfregue minhas costas! O que você está olhando?” Xiang Shu disse.
Chen Xing: “Por que eu deveria? Não sou seu servo! Já chega, Xiang Shu! Se me tratar como servo de novo, eu vou—”
“Vai o quê?” Xiang Shu zombou. “O que você vai fazer?”
Chen Xing: “Todos aqui desprezam o povo Han, não é? Agora entendi! Quando perguntaram quem eu era, você disse que eu era seu ‘servo’, certo? Você nunca teve boas intenções — só me trouxe para sua tribo para servi-lo!”
“O que mais, então?” Xiang Shu perguntou em resposta. “Você quer que o Grande Chanyu te sirva?”
“Você é um Protetor!” Chen Xing disse.
“Dane-se! Esfregue minhas costas!” Xiang Shu disse. “Vai fazer isso ou não?”
Chen Xing pegou o pano, mas quando Xiang Shu estendeu a mão para forçá-lo a obedecer, ele esquivou-se instintivamente — só para escorregar na pedra molhada, quase caindo na água. Xiang Shu agarrou seu braço e o puxou para fora da água, então Chen Xing só conseguiu ajudar Xiang Shu a esfregar suas costas com raiva.
Xiang Shu disse casualmente: “Se você for capaz de mostrar seu valor, ninguém ousaria te tratar como um servo.”
Chen Xing: “Ok. Mesmo que você não seja um Protetor, é assim que vocês tratam seus convidados?”
“Você não é um convidado”, disse Xiang Shu observando o corpo nu de Chen Xing por um instante. Ele estava prestes a dizer: “Você veio por vontade própria”, mas sua respiração inexplicavelmente falhou. Virou-se ligeiramente para o lado, como se evitasse algo.
Chen Xing: “Não subestime as pessoas.”
Xiang Shu desviou o olhar, virando o rosto, mas ergueu uma sobrancelha para ele, sinalizando: “Faça o que quiser”.
Chen Xing terminou o banho às pressas, vestiu-se rapidamente e voltou para a tenda. Enquanto isso Xiang Shu, envolto apenas em suas roupas íntimas branca, não fez nenhum esforço para se esconder de ninguém, sentando-se para o desjejum enquanto atendia a uma fila interminável de visitantes. Alguns vinham prestar homenagem, outros trazer saudações e havia aqueles que vinham discutir assuntos importantes. Mesmo vestido totalmente de branco com os cabelos soltos e ainda úmidos após o banho, nada diminuía a aura majestosa natural que emanava do Grande Chanyu.
“Como se escreve ‘doente’ e ‘consultar um médico’ na língua Tiele?” Chen Xing perguntou, depois do café da manhã, espirrando. Cansado de servir Xiang Shu, então perguntou ao jovem que falava a língua Xianbei na sua frente.
O outro parecia confuso e escreveu as palavras para ele no chão. Chen Xing perguntou novamente: “Como se diz ‘médico’?”
A outra pessoa o ensinou. Então, Chen Xing saiu, encontrou uma tábua, escreveu as palavras e a pendurou do lado de fora da tenda de Xiang Shu.
Xiang Shu: “……”
◈ ◈ ◈
Naquela tarde, algumas pessoas apareceram para consultas médicas. Metade da tenda de Xiang Shu foi usada para receber convidados, enquanto a outra metade foi ocupada por Chen Xing para atender pacientes.
Um homem Tiele entrou hesitante, olhando ao redor. Chen Xing arrastou uma mesa baixa, sentou-se e acenou para que o paciente se aproximasse. Em seguida, começou a verificar seu pulso e a investigar qual doença ele estava sofrendo.
“Você fala xianbei?” Chen Xing pegou um palito de madeira e pressionou a língua do paciente. “O que está sentindo?”
O paciente disparou uma enxurrada de palavras em tiele, e pontos de interrogação pareciam flutuar ao redor da cabeça de Chen Xing. Xiang Shu, sem alternativa, dispensou todos os seus convidados e agradeceu àqueles que vieram naquele dia. Ele disse: “Ele está com dor de barriga.”
Chen Xing disse: “Me ajude a traduzir, o que você está fazendo sentado aqui?”
Xiang Shu olhou para Chen Xing com descrença e disse: “De onde você tirou essa audácia?”
Chen Xing disse: “Ele é do seu clã! Pergunte o que ele comeu recentemente e há quanto tempo está com dor.”
Xiang Shu, então, teve que engolir a raiva e fazer a tradução. Chen Xing diagnosticou o problema do paciente com facilidade e preparou uma receita, depois pegou um pedaço de carvão e ordenou que Xiang Shu escrevesse os ingredientes necessários em língua Tiele no papel – tudo para ajudar o homem a encontrar os remédios.
Xiang Shu não esperava que, em uma única tarde, Chen Xing já estivesse dando ordens a ele. Mas, afinal, ele era o único em toda a planície de Chi Le Chuan que dominava a língua Han, e como os doentes eram seu próprio povo, não tinha como recusar. Não havia problema em traduzir, o problema é que os outros não conheciam os ingredientes medicinais dos Han – e foi assim que o poderoso Grande Chanyu se viu reduzido a ficar sentado ao lado de Chen Xing, servindo como seu assistente.
“Você não pode montar seu consultório em outro lugar?” Xiang Shu aproveitou um momento sem pacientes para perguntar.
“Não dá.” Chen Xing respondeu, secamente, enquanto organizava seus frascos de ervas. “Se aparecer gente doente a qualquer hora, como vou fechar? Você é o Grande Chanyu – eles não teriam coragem de perturbar você no meio da noite.”
“Você…” Xiang Shu teve vontade de bater em Chen Xing, mas, num piscar de olhos, outro paciente apareceu. Em Chi Le Chuan — fossem eles do Clã Tiele, Xiongnu ou qualquer uma das dezesseis tribos Hu — todos eram considerados irmãos de Xiang Shu e viam o Grande Chanyu como um pai. Xiang Shu também não suportava ver seu povo sofrendo. O médico das planícies só aparecia a cada vários meses, sem residência fixa, vagando de lugar em lugar para tratar os doentes. Na maioria das vezes, quando adoeciam, as pessoas só podiam aguentar a doença ou aceitar seu destino — e, quando o médico finalmente vinha, seu tratamento geralmente se resumia a sangria². A iniciativa de Chen Xing, portanto, foi uma bênção para a Antiga Aliança de Chi Le.
Em menos de três dias, o vale estava abarrotado de pessoas formando fila para consultas. A tenda real de Xiang Shu ficou tão lotada que nem uma agulha passaria. Sem alternativas, ele só podia sentar-se ao lado de Chen Xing, ajudando a traduzir as perguntas para as diversas línguas dos Hu.
Mais um dia se passou. Os pacientes atendidos por Chen Xing — fossem gripes, febres ou males mais sérios — começaram a melhorar um após o outro. Sua fama de “Médico Divino” se espalhou como um incêndio, e logo a maioria dos doentes de Chi Le Chuan migrou para o assentamento Tiele. No fim, Xiang Shu não teve escolha a não ser desmontar sua tenda real e remontá-la no centro do vale — cedendo o espaço original à onda crescente de pacientes.
“Há quanto tempo isso está crescendo?” Chen Xing perguntou com sincera preocupação, examinando uma idosa do Clã Xiongnu. A paciente tinha um tumor nas costas, e Chen Xing não pôde evitar um pensamento irônico: Se Feng Qianyi soubesse que estou tratando de pessoas Hu, certamente estaria rolando de raiva em seu túmulo.
“Três anos”, Xiang Shu traduziu com indiferença.
“Por que só vieram procurar tratamento agora?” Chen Xing perguntou.
Xiang Shu nem se deu ao trabalho de traduzir palavras tão óbvias. Chen Xing prescreveu um unguento para a idosa aplicar no tumor e chamou o próximo paciente. Enquanto fazia o exame, de repente percebeu que Xiang Shu estava encarando-o com uma expressão estranhamente absorta — tão intensa que fez os cabelos de Chen Xing eriçarem.
“Ei!” Chen Xing cutucou-o, “Diz alguma coisa!”
Aquele “Ei!” abrupto fez todos na tenda saltarem de susto, como se tivessem visto um fantasma. Xiang Shu saiu do transe e respondeu irritado: “Reumatismo! Dor no joelho! Pés inchados!”
“E este aqui?” Chen Xing atendeu outro ancião, sem demonstrar o menor nojo ao limpar a ferida purulenta do homem antes de aplicar o remédio.
Em seguida, uma mulher se aproximou.
“E você?” Chen Xing perguntou. “O que a traz aqui?”
Xiang Shu traduziu a resposta: “Pesadelos constantes. Não dorme bem há meses.”
Chen Xing: “Não posso ajudar com isso, prescreva a ela alguma Decocção Anshen³. Tem alguns ingredientes lá atrás — pode trazer para mim?”
Xiang Shu o ajudou a dispensar o remédio. Ele não esperava que, como o Grande Chanyu, fosse ser mandado de um lado para o outro por Chen Xing daquela forma. Depois de serem tratados, todos os pacientes agradeciam primeiro a Chen Xing, depois se curvavam e agradeciam a Xiang Shu. Xiang Shu apenas acenava com a mão para dispensá-los.
“Por que você está sempre me olhando?” Chen Xing disse. “Olhe para os pacientes.”
“Você…”, Xiang Shu respirou fundo, querendo dizer algo, mas se conteve.
Chen Xing: “?”
“Nada”, disse Xiang Shu. “As costelas dele doem. Já faz meio ano.”
Chen Xing pressionou o peito do homem e disse: “Você sempre dorme de bruços? Volte para casa e arrume um colchão mais macio, não durma sempre de bruços… Próximo!”
De repente, um alvoroço irrompeu do lado de fora da tenda — gritos desesperados de uma garota ecoaram, e Chen Xing imediatamente pressentiu: era um paciente à beira da morte. Sem hesitar, pediu aos outros que aguardassem e ordenou: “Tragam para dentro, AGORA!”
Xiang Shu franziu a testa, mas mal teve tempo de reagir quando uma maca entrou na tenda, carregando um jovem.
“Che Luofeng?!” Xiang Shu levantou-se de um salto, caindo de joelhos ao lado do homem.
Chen Xing rapidamente gesticulou para que todos saíssem da tenda. No chão, sobre a maca, o jovem jazia pálido como um cadáver, o corpo coberto de feridas. Um pote de cerâmica estava preso em seu abdômen, e um odor fétido impregnava o ar.
“Che Luofeng!” Xiang Shu exclamou ansiosamente.
“Shulü… Kong”, murmurou o jovem.
“Vocês se conhecem?” Chen Xing olhou para Xiang Shu, surpreso. Desde que se encontraram, era a primeira vez que via Xiang Shu tão desesperado — parecia uma pessoa completamente diferente!
“Rápido, salve-o!” Xiang Shu agarrou o pulso de Chen Xing com força, sua voz trêmula. “Ele é meu Anda. Você tem que salvá-lo, custe o que custar! Farei qualquer coisa que você pedir!”
“Eu vou!” Chen Xing sentiu a dor no pulso — a mão de Xiang Shu estava tão forte que quase o esmagava. “Me solta! Eu vou salvá-lo, mesmo se você não me prometer nada!”
Ao lado, uma jovem e uma mulher Rouran choravam. Chen Xing não conseguia se concentrar por causa dos prantos e disse: “Farei o meu melhor para salvá-lo! Onde é a lesão? Pelo que ele foi ferido?”
Chen Xing desenrolou cuidadosamente as bandagens do abdômen de Che Luofeng e removeu o pote de cerâmica com cautela. Assim que o tirou, seu coração gelou — exatamente como esperava, havia um buraco horrível no estômago do homem e partes dos intestinos estavam expostas. No abdômen inferior do jovem podiam ser vistos dois cortes profundos que foram deixados por uma lâmina afiada — seu estômago havia sido fatiado.
Além disso, o corpo do jovem estava marcado por inúmeros arranhões — feridas claramente deixadas por garras de animais.
“Garras de lobo… e golpes de lâmina” Chen Xing murmurou.
Xiang Shu abraçou a parte superior do corpo de Che Luofeng e soltou um suspiro prolongado. Ele foi tomado pela dor enquanto o segurava firmemente em seu abraço.
“Precisamos suturar o estômago primeiro”, Chen Xing disse, já se movendo para preparar os medicamentos. “Ferva uma tigela de Decocção Mafei4 para ele beber. Vou preparar as agulhas.”
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Notas:
1 安答 (ān dá), é o termo mongol para irmão juramentado.
2 放血治疗 (Fàngxiě zhìliá), termo médico para sangria que é a retirada de sangue de um paciente para prevenir ou curar doenças.
3 安神 (an shén), para acalmar os nervos; aliviar o mal-estar do corpo e da mente
4 麻醉汤 (má fèi tāng), Decocção Mafei, é uma mistura anestésica tradicional chinesa, contendo ervas como Aconitum (usada com extremo cuidado devido à toxicidade).