Registros Transitórios de Dinghai - Novel - Capítulo 27
À noite, em uma área desolada fora do condado de Tongguan, 6 mil pessoas estavam reunidas em uma planície infinita de loess para passar a noite ao relento.
Uma rajada de vento passou; no fim do verão, ainda fazia frio no meio da madrugada. Os membros das Dezesseis Tribos Hu já haviam adormecido. Lobos podiam ser ouvidos uivando nas montanhas distantes, e as sombras das montanhas e rios eram como uma gigantesca cortina.
A Ursa Maior pairava alta no céu noturno. A Via Láctea em uma noite de verão parecia como se partículas de luz tivessem se derramado pelo firmamento, todas cintilando com um brilho intenso.
No chão, Chen Xing estava envolto em um cobertor, encarando a fogueira com um olhar distante.
Desde que deixaram o Palácio Afang, Xiang Shu permanecia em silêncio. Nenhum de seus subordinados ousava perturbá-los — limitavam-se a acender uma fogueira sob a árvore solitária no deserto. E ninguém, ainda menos, tentava se aproximar de Xiang Shu. Apenas Chen Xing, Xiang Shu e Feng Qianjun permaneciam ali, sentados em silêncio.
Feng Qianjun ergueu o pano que cobria o cadáver, revelando o corpo inerte de seu irmão mais velho, Feng Qianyi. Empilhou lenha às margens do Rio Tong e ateou fogo aos restos do irmão.
O fogo ardia em labaredas intensas enquanto consumia o corpo de Feng Qianyi. Suas pernas haviam sido amputadas abaixo dos joelhos. O longo tempo confinado a uma cadeira de rodas atrofiou seus membros, que agora pareciam frágeis como os de uma criança. Uma rajada de vento soprou, espalhando as cinzas pelo céu. Chen Xing pôde ver vagamente um fraco rastro de luz que continuava a subir, elevando-se em direção ao céu, que era tão brilhante quanto um rio de estrelas.
Xiang Shu olhou para cima; vendo as faixas luminosas vastas e deslumbrantes se entrelaçando na Via Láctea, como um rio colossal fluindo através do céu noturno.
“Você está vendo?” Chen Xing perguntou.
Xiang Shu franziu levemente as sobrancelhas.
“Veia Divina”, disse Chen Xing. “O destino final de todos os ‘Daos’ do mundo. Laozi¹ certa vez disse: o que está além dos sentidos² é chamado de ‘Dao’, enquanto o que é perceptível³ é denominado ‘qi⁴’. Todos os seres que habitam o mundo humano um dia abandonarão a forma do qi e retornarão ao Grande Dao.”
Xiang Shu perguntou: “Isso é o qi espiritual do Céu e da Terra?”
“Não”, Chen Xing respondeu. “As Veias Divinas e Terrestres são rios de uma ordem superior ao qi espiritual.”
Depois que o corpo do irmão se transformou em cinzas, Feng Qianjun as recolheu e colocou em uma urna. Ao retornar onde os dois estavam, limpou cuidadosamente uma pequena placa de jade e a examinou à luz da fogueira. Nela estava gravada uma inscrição:
【Feng, Exorcista da Grande Han】
“A maior sede do Banco Xifeng costumava ser em Luoyang”, Feng Qianjun disse. “Quando meu dage assumiu os negócios da família com meu pai, eu estava aprendendo a auditar. Dos sete aos dezesseis anos, eu só via meu dage uma vez a cada dois ou três anos.”
Envolto em seu cobertor, Chen Xing permaneceu em silêncio. Ele sabia que, naquele momento, Feng Qianjun precisava desabafar para aliviar a angústia que sentia.
Feng Qianjun continuou: “Naquela época, Luoyang ainda pertencia ao ‘Grande Yan’, fundado pelo Clã Murong.”
“O Banco Xifeng havia estabelecido um império em Luoyang — naquela época, uma capital renomada em todo o mundo — acumulando riquezas equivalentes às de uma nação inteira. Mantínhamos contatos discretos com os Jin do Sul, preparando-nos em segredo para levantar um exército e expulsar as Tribos Hu. Aguardávamos o momento oportuno para receber de volta o Exército Jin e recuperar o país que havíamos perdido.”
“Mais tarde, quando Fu Jian enviou suas tropas para conquistar o Grande Yan, a cidade caiu numa única noite. Todos os membros do Clã Murong foram capturados e se renderam a Fu Jian. Foi justamente durante essa guerra que Feng Qianyi fugiu às pressas com sua família. No caos da guerra, todos os nossos guarda-costas foram mortos em combate. Sua esposa foi assassinada por soldados, e seus dois filhos morreram no conflito. Ele também teve as pernas esmagadas por uma carruagem de guerra.”
Quando Feng Qianjun recebeu a terrível notícia, partiu imediatamente para o norte em busca do irmão. Após anos de buscas, finalmente o encontrou em Chang’an.
Feng Qianyi, porém, pouco falou sobre o passado, apenas disse que isso era algo que eles tinham que enfrentar em seu caminho para a grandeza. Com a queda do Grande Yan, Fu Jian tornou-se seu novo alvo. Quanto ao Clã Murong (agora meros ministros de sua nação caída), poderiam tentar se aproximar deles e usá-los quando necessário.
“Eu ainda me lembro do dia em que conheci Qinghe”, murmurou Feng Qianjun, com um olhar distante. “Ela e seu irmão mais novo, Murong Chong, estavam confinados nas profundezas do palácio. Gege me enviou para entregar algumas joias que havíamos comprado para ela. Murong Chong não gostava de falar, mas ela ficou radiante e me perguntou qual era meu nome… perguntou se as peônias de Luoyang já haviam desabrochado, e tantas outras coisas sobre o norte…”
“…Após a queda do Grande Yan, já fazia três anos que eu não voltava a Luoyang. Tive que inventar algumas mentiras para enganá-la.” Feng Qianjun saiu de seu devaneio e forçou um sorriso para Chen Xing antes de continuar: “Quando cheguei em casa e contei ao meu dage, ele apenas disse: ‘Seja Luoyang, Guanzhong, Youzhou ou Yongzhou – todas são terras que pertencem a nós, os Han. Que direito têm esses Xianbei de considerar Luoyang como sua terra natal?’”
Ouvindo até esse ponto, Xiang Shu levantou-se e se afastou, deixando os dois Han terem seu espaço para conversar.
Feng Qianjun sorriu impotente: “Mas o Clã Murong do Grande Yan foi destruído por um Han. Wang Meng cumpria ordens de Fu Jian; aquela vitória na guerra mergulhou o povo dos quatro passos na miséria. Eles desprezam Wang Meng por ter se tornado oficial de Fu Jian. Tianchi, você os odeia?”
Chen Xing recordou a morte de seu pai, então olhou para o horizonte, onde Xiang Shu estava deitado, recostado em uma rocha.
“Antes de morrer, meu pai disse que, não importa se você é um Hu ou um Han”, Chen Xing falou lentamente, “todos somos habitantes desta grandiosa Terra Divina. Quando os Cinco Bárbaros marcharam para o sul, muitos pereceram ou ficaram feridos, e inocentes morreram na guerra. Mas quando não foi assim durante a Guerra dos Oito Príncipes da Dinastia Jin? Os nobres Han que fugiram para o sul ainda tinham a ideia de se vingar, mas quanto aos soldados e ao povo comum que morreram no caos dos Oito Príncipes, a quem poderiam recorrer?”
“No fim das contas, tudo se resume a uma única coisa: pôr fim à guerra.” Chen Xing suspirou profundamente. “Além disso, se a raiz deste caos dos demônios da seca não for erradicada, quando ocorrer o grande surto, nem Hus nem Hans precisarão continuar lutando. O resultado será o mesmo para todos: a morte.”
Feng Qianjun permaneceu em silêncio. Ele olhou para o sabre Senluo em sua mão, balançando-o como se estivesse avaliando seu peso.
“Você está planejando ir para o norte com o Grande Chanyu?” Feng Qianjun perguntou.
“Não sei.” Chen Xing parecia ansioso. “O tempo está se esgotando. Ainda não tenho nenhuma pista sobre o motivo do silêncio que caiu sobre toda a magia. Pelo menos, nos próximos três anos, preciso recuperar a magia perdida para todos. Depois disso, mesmo que eu não me importe ou não preste atenção, pelo menos haverá algumas pessoas que poderão lutar contra o ‘Senhor’ que Feng Qianyi mencionou. Definitivamente não somos os únicos dois exorcistas neste mundo, deve haver outros que receberam essa herança…”
Chen Xing havia obtido a primeira pista, relacionada à Pérola Dinghai. Embora ainda não conhecesse os detalhes, segundo os registros, no ano seguinte ao silêncio da magia, a Pérola Dinghai ainda continha poderosos poderes mágicos, então tudo deve estar relacionado de alguma forma.
É que o mundo é tão vasto, então onde podemos procurar?
Feng Qianjun disse: “Deixe a investigação dos demônios da seca comigo. Amanhã de manhã, Yuxiong partirá.”
Chen Xing: “Para onde você vai?”
Feng Qianjun respondeu: “Talvez eu volte sorrateiramente a Chang’an, ou faça uma viagem a Luoyang, ou procure os túmulos dos Oito Príncipes. Vou investigar as pessoas com quem meu dage teve contato antes de morrer, e como ele obteve a habilidade para controlar o ressentimento. Você só precisa se concentrar em buscar sua Pérola Dinghai.”
Chen Xing replicou imediatamente: “Feng-dage, esse assunto não pode ser apressado…”
Feng Qianjun refletiu por um momento antes de acrescentar: “Consigo controlar o sabre Senluo de certa forma, embora de maneira diferente.”
Chen Xing tampouco esperava que uma arma mágica outrora alimentada pelo qi espiritual do Céu e da Terra agora absorvesse ressentimento e fosse usada dessa maneira. Era como se o destino decretasse usar a escuridão para combater a escuridão. Os espinhos por toda parte, as vinhas negras e os yaos de árvores murchas agora assumiam um papel poderoso. Além disso, por ativar as antigas artes Senluo Wanxiang – despertando montanhas, mares, homens-árvore e conduzindo todas aquelas formas de vida florescentes -, a identidade de Feng Qianjun havia sofrido uma transformação radical.
Ele se tornou um Exorcista das Trevas.
Contudo, recorrer indiscriminadamente ao ressentimento e ativar repetidamente o sabre Senluo à força certamente causaria um grande desgaste ao corpo. Chen Xing lembrou Feng Qianjun disso inúmeras vezes, ao que Feng Qianjun explicou: “Não se preocupe. É impossível usar magia onde não há ressentimento.”
E era verdade. Para Feng Qianjun empunhar o sabre Senluo e invocar os yaos das árvores murchas e as vinhas sanguinárias, era preciso estar em um local repleto de ressentimento. Enquanto não houvesse muitas mortes nas proximidades, o sabre não teria acesso ao poder do ressentimento — tornando sua ativação impossível.
“Me dê mais um pouco de tempo”, Chen Xing respondeu, “deixe-me pensar com cuidado.”
Feng Qianjun, percebendo que não o convenceria, acenou com a cabeça e sinalizou para que ele descansasse primeiro. Chen Xing pretendia simplesmente dormir sob a árvore, mas Feng Qianjun o cutucou e insistiu que fosse até Xiang Shu.
Chen Xing então atravessou o campo aberto até Xiang Shu. Xiang Shu permaneceu em silêncio, com os olhos fechados, até que o grasnar áspero de corvos ecoou à distância. Xiang Shu despertou de imediato, e em seu olhar vislumbrou-se um lampejo de temor e pânico enquanto observava o bando de corvos que sobrevoava o local.
Chen Xing observou Xiang Shu com curiosidade, notando como ele rapidamente recuperou a compostura. Então, sussurrou: “Preciso encontrar a Pérola Dinghai, mas o pior é que todos os registros que trouxemos do Espelho Yin-Yang se perderam.”
“Eu conheço aquele lugar”, disse Xiang Shu. “Siga-me.”
Chen Xing: “!!!”
O mapa desenhado na última página tinha um nome: “Grande Pântano”. Chen Xing já fizera várias conjecturas — talvez fosse o lendário Pântano Yunmeng, mas esse local existia apenas nas lendas, sem nenhuma localização precisa conhecida nos dias atuais.
“Fica no sul?” Chen Xing perguntou.
Xiang Shu não respondeu, apenas se moveu ligeiramente, abrindo espaço para Chen Xing ao seu lado.
Então Chen Xing se aproximou, e Xiang Shu continuou: “Vamos voltar para Chi Le Chuan primeiro. Muitas coisas exigem o apoio da tribo.”
Chen Xing calculou o tempo: quando deixou o Monte Hua, ainda tinha quatro anos. Agora que a Terra Divina saía do verão, restavam apenas três anos — o prazo estava apertado. Mesmo assim, não pressionou Xiang Shu, limitando-se a acenar com a cabeça.
No silêncio da noite, a planície estava imersa em quietude. De repente, Xiang Shu abriu os olhos e fitou o horizonte distante.
Feng Qianjun já havia se levantado de onde estava, sob a árvore. Com as cinzas de seu irmão mais velho, montou em um cavalo e, ao contornar os arredores do acampamento temporário, ergueu a mão e acenou para Xiang Shu.
Xiang Shu fechou os olhos novamente, e assim Feng Qianjun desapareceu na escuridão do crepúsculo.
◈ ◈ ◈
Na hora de zi*, uma luz vermelha como sangue podia ser vista por todo o Palácio Huanmo.
(n/t: hora de zi, entre 23h a 1h a.m)
Um coração gigantesco, tão grande quanto uma casa, estava suspenso no ar, pulsando lentamente para cima e para baixo. Inúmeros vasos sanguíneos se enrolavam em torno daquele coração estranho e colossal, estendendo-se por todos os cantos do Palácio Huanmo.
Milhares de vasos sanguíneos penetravam as paredes, sugando a energia do ressentimento da terra para se alimentar. O brilho da Veia da Terra era refinado em um fluxo interminável de névoa negra-arroxeada, que era injetada no coração através dos vasos sanguíneos.
Um estudioso mascarado, vestindo um manto negro, adentrou lentamente o Palácio Huanmo carregando nos braços o corpo sem vida da Princesa Qinghe.
“Este mortal…”, o coração emitiu uma voz rouca, “é completamente incontrolável.”
O estudioso respondeu: “Feng Qianyi estava obcecado por vingança e, além disso, sua formação foi quebrada pelo portador da Lâmpada do Coração. Por isso, nossos planos foram perturbados.”
A voz dentro do coração explodiu de fúria: “Estúpido! Ele desperdiçou todo o esforço que você investiu para forjar essas tropas demoníacas!”
O estudioso respondeu: “Feng Qianyi já foi reduzido a cinzas, o que pode ser considerado sua punição. Meu Senhor, acalme-se. Sempre haverá humanos para usar. No Antigo Pacto de Chi Le, ainda restam 100 mil pastores – mais que suficientes para cobrir essa perda. Mas aquele Shulü Kong…”
Após um breve silêncio, continuou com calma: “O maior guerreiro além da Grande Muralha… mesmo que tenha sido escolhido como Protetor do Exorcista, não deveria ser absurdamente forte. É verdadeiramente estranho. Por que a Lâmpada do Coração o escolheu?”
“Ele não passa de um mortal”, o coração respondeu lentamente, “e por mais poderoso que seja, ainda terá limitações. Por que temê-lo?”
O estudioso respondeu com respeito: “Meu Senhor talvez não saiba, mas embora o número de pessoas no Chi Le Chuan que faz parte do Pacto além da Grande Muralha seja limitado, eles ainda são uma força que não pode ser subestimada. Caso contrário, não teríamos precisado passar por tantos problemas nos últimos anos. Se pudéssemos recrutar Shülü Kong para os nossos propósitos, certamente pouparíamos muitos problemas desnecessários.”
“Isso não é algo com que você deva se preocupar agora; como devemos lidar com a Formação dos Dez Mil Espíritos?” A voz rouca do coração soou, “Depois de permanecer adormecido por tantos anos, Zhen definitivamente não deixaria todos os nossos esforços irem por água abaixo apenas por causa deste acidente. E agora, incluindo Zhou Yi, já são dois dos seus subordinados mortos por aquele Exorcista!”
O estudioso disse: “Agora que Fu Jian destruiu a Grande Muralha e exilou Shulü Kong, não haverá ameaça a Chang’an a curto prazo. Ainda estamos no escuro, Chen Xing seguiu Shulü Kong para fugir para além da Grande Muralha, então, presumivelmente, ele não retornará às Planícies Centrais por enquanto. Enviarei Zhou Zhen para eliminá-los, e assim eles não conseguirão mais afetar a ressurreição de nosso Senhor. Claro, agora que o silêncio caiu sobre toda a magia, apenas a Lâmpada do Coração ainda é de alguma utilidade. Mesmo que os deixássemos em paz, não causaria muitas turbulências… meu Senhor.”
O estudioso colocou a Princesa Qinghe no altar, logo abaixo do coração gigantesco, e implorou: “Por favor, conceda uma nova vida a esta jovem. Depois disso, a Formação dos Dez Mil Espíritos em Chang’an deve depender dela.”
O coração zombou. Um coágulo de sangue se formou e escorreu lentamente pelas paredes de sua membrana até, com um leve ‘plop’, cair sobre o cadáver da Princesa Qinghe. Imediatamente, o corpo brilhou com uma luz avermelhada, enquanto fios de ressentimento começaram a se enrolar em torno dela.
◈ ◈ ◈
No final do verão, quando o outono estava prestes a começar, Xiang Shu liderou as Dezesseis Tribos Hu para além da Grande Muralha, adentrando o imenso mar de gramíneas que se perdia de vista por milhares de li. Era a primeira vez que Chen Xing via uma pradaria tão vasta e majestosa. O horizonte se estendia infinitamente, com bandos de pássaros cruzando os céus. Em comparação com as prósperas cidades do interior, este imponente norte das Terras Divinas apresentava um espetáculo completamente diferente.
Durante a jornada rumo ao norte, cada vez mais pessoas se juntavam à caravana com suas famílias. As Tribos Qiang e Di haviam habitado Guanlong por gerações, mas nunca receberam tratamento preferencial. Todas as tribos eram enviadas em expedições punitivas, os conflitos se prolongavam interminavelmente e pesados impostos eram cobrados sempre que tropas eram mobilizadas. Após anos de severas secas, o povo já não tinha como sobreviver e viu-se forçado a abandonar as terras que cultivavam por gerações. Em vez disso, decidiram seguir o Grande Chanyu em sua jornada para o Norte em busca de novos meios de sustento.
Com o constante fluxo de novos integrantes, o grupo de migrantes já ultrapassava dez mil pessoas, formando uma cena verdadeiramente grandiosa. Ao atravessarem a Grande Muralha, os generais Qin não ousaram impedi-los, limitando-se a abrir os portões e permitir sua passagem. Ao chegarem em Caohai*, Xiang Shu e seus seguidores conseguiram carroças de alguma fonte misteriosa e adquiriram todos os suprimentos necessários antes de deixarem definitivamente a Grande Muralha. Assim formaram um imenso comboio que avançava em direção ao horizonte distante – as planícies de Chi Le Chuan.
(n/t: *Caohai é literalmente mar de gramíneas.)
Que tipo de lugar é esse? Chen Xing havia perguntado antes aos acompanhantes de Xiang Shu, e a resposta deles foi que se tratava do extremo norte das Terras Divinas, a última fronteira habitável.
Se alguém continuasse para o norte, adentraria uma vasta tundra e campos nevados, onde a neve rodopiava sem fim, agitada pelos ventos gélidos. Era uma terra desolada e estéril. Poucos foram os que se aventuraram para além dali e retornaram.
Os principais ramos dos Cinco Bárbaros em Guanzhong originaram-se de lugares como o Monte Baitou, as Montanhas Xing’an, Xiliang e outras regiões. No final, eles formaram o Antigo Pacto de Chi Le sob o domínio de Chi Le Chuan. Esse era o lar ancestral dos povos Xiongnu e Tiele, e também a terra natal compartilhada por todas as tribos dos povos que os Han chamavam de “Hu”.
Assim como na letra da canção:
“Chi Le Chuan, sob as montanhas Yin;
O céu se assemelha a uma tenda arqueada que cobria toda a planície.”
“Os que vivem lá são principalmente nômades, há muito poucos médicos”, disse Xiang Shu. “Compre alguns medicamentos das Planícies Centrais ao longo do caminho para levar de volta a Chi Le Chuan.”
Chen Xing escreveu uma lista de ervas medicinais e encarregou os subordinados de Xiang Shu para comprá-los. Em seu tempo livre, ele sentava na carruagem e olhava para os escritos e desenhos que Xiang Shu fazia em um pedaço de papel.
A partida repentina de Feng Qianjun o deixou profundamente preocupado, mas uma tarefa mais urgente exigia sua atenção: encontrar o paradeiro da Pérola Dinghai o quanto antes. Assim que a magia retornasse à Terra Divina, metade do pesado fardo de Chen Xing seria aliviado. Ele mantinha a firme convicção de que, com o tempo, a antiga profissão de Exorcista renasceria – e quando isso acontecesse, reuniriam uma força colossal para enfrentar o Senhor por trás de Feng Qianyi e os “demônios da seca” que haviam criado.
Por enquanto, ele apenas esperava que Fu Jian não se envolvesse mais em massacres em grande escala e controlasse um pouco seu ressentimento.
Chen Xing disse: “Eu realmente não faço ideia do que é o ‘Grande Pântano’ mencionado nos livros.”
Xiang Shu segurava um bastão de carvão entre os dedos indicador e médio levemente curvados. Seu modo de segurar o bastão diferia do estilo Han, mas seus dedos esbeltos tornavam sua postura graciosa. Sobre um pergaminho, ele esboçou o contorno de montanhas sinuosas, rios e o relevo de uma região.
Chen Xing: “Ah!”
Xiang Shu havia apenas dado uma rápida olhada, mas conseguiu memorizar perfeitamente o mapa da última página do antigo manuscrito do Departamento de Exorcismo. Mostrou-o a Chen Xing, perguntando: “É aqui?”
No mapa, havia um lago, e atrás dele, três picos desconectados que se elevavam até as nuvens. Muitas florestas pontilhavam suas margens. Seu terreno era extremamente estranho; havia lagos na planície, e montanhas dentro do lago, ao lado das quais havia anotações na língua Tiele.
“Sim, sim, sim!” Chen Xing sentiu como se tivesse encontrado um tesouro. Agarrou o mapa e exclamou: “Você realmente memorizou tudo!”
“Não é o Lago Yunmeng, e também não fica no sul”, disse Xiang Shu casualmente. “Segundo a lenda, fica ao norte de Chi Le Chuan, num lugar distante. Em Tiele, chamam de Erqilun, enquanto em Xiongnu é conhecido como Karosha. O nome se refere a um lugar onde o dragão caiu e morreu.”
Chen Xing perguntou, surpreso: “Você já esteve lá?”
Xiang Shu respondeu: “Vi em um livro que um ancião me deu quando era criança.”
Chen Xing olhou para baixo, depois olhou para Xiang Shu novamente, enquanto Xiang Shu havia mudado para outro pedaço de pergaminho e começou a recordar a cena da penúltima página do livro.
“Vocês também têm livros”, Chen Xing disse surpreso, “onde estão guardados seus registros antigos?”
“Por quê?” Xiang Shu disse friamente. “Só vocês, Hans, são dignos de ler e escrever?”
Chen Xing rapidamente explicou que não era isso que queria dizer, e que apenas desejava dar uma olhada. Talvez ele pudesse encontrar algumas pistas no local onde o Pacto de Chi Le guardava seus textos antigos.
A carruagem avançava pela pradaria. Ao longe, cordilheiras envoltas em névoa tornavam-se vagamente visíveis, e naquele momento, toda a comitiva irrompeu em gritos alegres. Chen Xing ergueu subitamente o olhar. Ao contornarem a encosta, diante deles desdobrava-se uma vastidão onde incontáveis tendas se espalhavam, tendo montanhas e rios como pano de fundo. O verão findava, e quando uma lufada de vento soprou, foi como se um deslumbrante pergaminho pintado se desenrolasse lentamente diante de seus olhos.
Eles haviam chegado a Chi Le Chuan.
Chen Xing ficou pasmo diante da cena à sua frente. Sob as Montanhas Yin, entre o abraço serpenteante do Rio Kundulun e do Rio Dahei, estendia-se a pradaria – um imenso tapete verde que sustentava quase 200 mil pastores. Uma infinidade de tendas pontilhavam a paisagem, escalando desde as colinas até as bases das montanhas como pérolas num colar celestial!
No início do outono, quase todos os nômades além da Grande Muralha migraram em direção às Montanhas Yin, adorando esta montanha sagrada das Dezesseis Tribos Hu ao se unirem à Antiga Aliança Chi Le.
“O Grande Chanyu retornou!” Um garoto avistou a caravana da margem do Rio Kudulun e gritou alto.
Uma bela mulher que lavava roupas às margens do rio levantou-se e começou a cantar com voz ressonante, enquanto os guerreiros da comitiva responderam em coro com uma canção vigorosa. Xiang Shu permanecia sentado na carruagem aberta, guardando cuidadosamente o pergaminho. Suas longas pernas pendiam da borda da carruagem enquanto ele ajustava a postura, então deitou-se confortavelmente.
Milhares de cavalos em disparada irromperam da Antiga Aliança Chi Le em sua direção, liderados por vários jovens. Tanto os Xiongnu quanto o povo Tiele gritavam em coro, mas Xiang Shu permaneceu indiferente. Num instante, os jovens já cercavam a comitiva por ambos os lados, todos falando animados e rindo, eles faziam perguntas a Xiang Shu em uma língua que Chen Xing não conseguia entender de forma alguma, deixando-o apenas ouvindo, confuso. No entanto, pelas expressões, ele deduziu que eles não paravam de perguntar a Xiang Shu onde ele tinha estado todo esse tempo.
Os cantos da boca de Xiang Shu se ergueram levemente, o que era uma rara visão, pois ele parecia estar sorrindo um pouco. Os homens da tribo que seguiam atrás começaram a clamar, então o grupo de jovens se virou e foi ajudar a descarregar e mover as coisas para acomodar as pessoas.
Um dos jovens, falando em língua Xiongnu, estendeu uma vara de madeira na direção da carruagem aberta, tentando atingir Chen Xing. Este esquivou-se rapidamente, visivelmente irritado. Era óbvio o que pensava: Certamente está dizendo: ‘Por que trouxeste esse Han pra cá?’.
“Sai daqui!” Xiang Shu finalmente disse em tiele.
O jovem caiu na gargalhada e foi embora em seu cavalo.
As pessoas continuavam tentando se aproximar, como se quisessem pedir instruções a Xiang Shu. Xiang Shu ou não as respondia, ou apenas murmurava um preguiçoso “uhn”, então os que se aproximavam levavam os Hu que estavam na comitiva para serem reassentados. As pessoas que se mudaram para o Norte com Xiang Shu pareciam todas muito animadas, como se tivessem encontrado seus parentes há muito perdidos ali.
Chen Xing disse: “Parece que não têm vivido muito confortavelmente depois de entrar na passagem.”
Era aquela sensação de conforto e liberdade que se tem ao voltar para casa. Comparado ao tempo em que estavam na Cidade de Chang’an, onde tinham que seguir as regras impostas por Fu Jian, estudar para se tornar funcionários e alcançar um cargo oficial, esses bárbaros obviamente preferiam retomar suas vidas despreocupadas nas pradarias. Era algo que realmente estava gravado em seus ossos.
Xiang Shu não respondeu. Agora havia cada vez menos pessoas no comboio, e, no final, só restaram os dois. Duas carroças foram puxadas até o pé das montanhas a leste da Antiga Aliança, onde havia um vale.
Havia pouquíssimas pessoas morando ali. Quando viram Xiang Shu retornar, todos aplaudiram.
A carruagem parou bem em frente à maior tenda. Xiang Shu saltou da carruagem, e Chen Xing de repente pensou: já que Xiang Shu era o Grande Chanyu e já havia passado da idade de casar, ele teria uma esposa e filhos em casa?
Mas havia poucas pessoas neste vale, e o lugar onde Xiang Shu morava era muito tranquilo. A tenda real foi construída no sopé de uma montanha; ocupando a nascente do riacho — uma clara demonstração de seu status elevado.
Muitas pessoas vieram cumprimentar Xiang Shu. Ele respondeu a todos na língua tiele, e então se dispersaram. Chen Xing olhou ao redor, curioso, e perguntou: “Esta é a sua casa?”
Xiang Shu respondeu: “Vou reunir os anciãos primeiro. Fique à vontade.”
Em seguida, disse algo aos outros, provavelmente pedindo que ajudassem Chen Xing a se acomodar.
Naquele momento, trouxeram um cavalo para Xiang Shu, que montou rapidamente e, com um sonoro “Jia!”, galopou para fora do vale.
Chen Xing gritou: “Ei, espera! Eu não entendo a sua língua!”
Assim que Xiang Shu partiu, vários jovens Tiele se aproximaram, observando Chen Xing com curiosidade e começando a comentar entre si.
Os cantos da boca de Chen Xing se contraíram, e ele só conseguiu acenar educadamente em resposta.
Alguém jogou um pano molhado nele. Chen Xing rapidamente disse: “Obrigado.” Então usou-o para limpar o rosto e pensou: então, além da Grande Muralha, eles recebem os convidados fazendo-os lavar o rosto primeiro.
Os rapazes murmuraram um pouco mais e depois caíram na gargalhada. Alguém apontou Chen Xing para a tenda, e Chen Xing disse: “Ok, vou descansar agora. Ninguém precisa se incomodar.”
Chen Xing ergueu a entrada da tenda e adentrou a casa de Xiang Shu. Seus olhos encontraram um enorme tapete azul bordado estendido no chão, e a surpresa continuou: ali havia não apenas mobília, mas também roupas de cama, utensílios, mesas baixas – tudo meticulosamente disposto. Até mesmo biombos trazidos do sul enfeitavam o espaço. A iluminação do ambiente era notável. Janelas à prova de neve no topo da tenda permitiam que a luz fluísse generosamente, banhando o interior com uma claridade quase dourada.
Num canto, uma estante repleta de livros chamou sua atenção – volumes ilustrados e manuscritos antigos das várias tribos.
Mas como seu dono estava ausente por tanto tempo, tudo estava coberto por uma camada de poeira.
O jovem Tiele que estava do lado de fora trouxe um balde de água. Ele apontou para a mesa, depois deu um tapinha no ombro de Chen Xing e disse na língua Xianbei: “Comece agora. Limpe tudo direito. Termine de arrumar a tenda real antes que o Grande Chanyu volte.”
Chen Xing olhou para o pano em sua mão, depois para os outros ao redor. Um sorriso irônico surgiu em seus lábios quando respondeu educadamente na língua Han: “Vão se ferrar.”
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Notas:
1 老子 (Lǎo Zǐ), filósofo chinês.
2 Espiritual.
3 Definitivo.
4 Este não é o Qi que você normalmente vê em romances de cultivo; o termo original é 器 (qì).
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Flor: Yo Povo!
Iniciamos o volume 2!
Estou pensando em postar a cada 15 dias aos sábados, assim posso trazer uma quantidade maior de capítulos do que 2 por vez, o que acham?
Até mais!